Ausência e Memória
Faço muitas vezes um exercício de auto-avaliação, para me perceber e tentar melhorar o que puder ser reajustado. Numa das vezes em que me propus a isso, estive a pensar no que haveria em mim que fosse o melhor de tudo. Rapidamente percebi que não eram as minhas qualidades mais imediatas, mas as memórias de quem já conheci, uma multidão de rostos em lugares mais ou menos improváveis que foram ficando em mim e que lembro com carinho, como se os abraçasse ao longe de cada vez que penso neles. A melhor parte de nós são as pessoas que conhecemos e levamos dentro, nos gestos e no sorriso, pela vida fora. E vamos crescendo lado a lado, somos presentes numa história nunca individual e seres para o outro.
Há poucos meses tive de dizer adeus a uma amiga que eu acreditava que ia ficar sempre por perto, e íamos ser velhinhas juntas e dar bengaladas uma à outra no lar. Foi tudo tão rápido, e ela tinha tanto ainda para ser mas não foi isso que aconteceu – não houve tempo de pensar em sonhos grandes e longos. Ela já aqui não vai estar mais. E eu tento gerir esta dor vazia, sem começo, sem lugar onde a guardar. Conheço (ainda falo dela no presente) esta amiga há metade da minha vida, e “culpo” Deus por esse encontro: foi no grupo de jovens, ela estava lá e eu também e muita gente mais (não foi assim há tantos anos, mas naquela altura parecia que Deus e os movimentos de jovens estavam mais na moda que hoje, em que temos tanta dificuldade em dinamizar grupos quase sem gente a que mesmo assim Ele inspira e por isso se reúnem) e não podia não reparar naquela sensibilidade, entrega aos outros e boa disposição de uma miúda tímida mas atenta. E importante, ela foi tão importante para mim ao longo do tempo. Passámos quase 15 anos e tantas histórias de fé, de desafio, de fraqueza, de crescimento, de dúvida, de aventura nesse grupo de jovens. Depois aconteceu o que acontece às pessoas quando crescem: vão tentar arrumar a vida, entre correrias e obrigações.
Quando me disseram que ela já cá não estava, contaram-me também que teve fé até ao fim… E eu, que andava a tentar gerir a sua perda e a revolta que acompanhava esse vazio e não sabia muito bem em que sítio deixara a confiança que vem de Deus para as coisas que não compreendemos, dei por mim a arranjar nisso alguma força. Ela tinha mais direito a ser frágil do que eu, a hesitar, a pôr em causa a injustiça-cruz que lhe coube, a desistir quando as coisas já estavam demasiado longe de voltarem a ficar bem. E nunca o fez. Porque o fazia eu? Perdi tanto, perdemos tanto, mas guardamos o privilégio de a termos conhecido. Precisei de falar em morte com dias e horas concretos: admito que não tive coragem para estar perto nos momentos derradeiros (tenho o coração sereno e não guardo nada por resolver na nossa amizade, mas não consegui interiorizar que a minha amiga cheia de vida se estava a esvair e decidi guardá-la um bocadinho antes, quando ainda sorria timidamente), admirei e admiro muito os outros amigos que não lhe largaram a mão mesmo quando ela já não sentia o toque porque os fármacos para as dores tinham de ser tão fortes para que ela não sofresse mais. Demorei várias semanas a conseguir sequer voltar a cantar nas animações da eucaristia (algo que tínhamos feito juntas tantos anos), ou a orientar os sonos com a realidade que agora não me agradava nem um bocadinho (ela nunca mais ia estar por perto para algo tão corriqueiro como bebermos um café e conversarmos a perder a noção das horas).
Não digo que hoje é mais fácil – nunca vai ser, a amizade é exigente em si mesma e cada amigo constrói em nós um lugar cheio de memórias –, só estou mais serena. Deus, que nos juntou sem saber bem o que estava a fazer, vai-me dando alguma calma, ajuda a serenar. Os outros amigos que também a conheceram são algum conforto, as músicas que cantávamos juntos são uma dor que sorri, os pais dela tristes mas a tentar (sobre)viver sem ela são um testemunho de amor. Estava a lembrar-me disto e apercebi-me de que tenho medo de me esquecer da voz dela… As outras lembranças vão indo e vindo e há fotografias e gente que também lá estava connosco. Ela vive em nós, mas isso nem sempre chega. Ninguém está preparado para o amor, para a amizade, para a vida. E ninguém está preparado para a perda, para a ausência depois da vida.
Sofia Escourido