Às Terças Com...

Como viver para sempre e outras formas de não morrer

Nunca me perco muito tempo a pensar nas riquezas que não possuo, nem mesmo a antever o que seria da minha vida se um dia, essas coisas do mundo, acordassem sobre mim e me enchessem elas próprias de vazio. Nunca sonho com o que me estorva, nunca quero o que não me fará melhor, nunca procuro ter mais do que me faz falta para ser eu, nunca peço o que não me poderá ser dado. Nunca espero, nunca aguardo, nunca anseio, nunca desejo outras coisas para além de viver para sempre. Na verdade não queria morrer nunca. Desde a primeira vez que me vi como um ser que poderia morrer, que me fechei por dentro, deixando a cabeça debaixo dos lençóis, rezando de forma grave até me vencer o cansaço, pedindo muito para não morrer nunca. Nessa noite senti a certeza de uma vida finita para o que fazemos, mas nunca o fim para o que somos realmente. Na verdade eu não queria morrer mesmo, tal como hoje quero muito não morrer nunca.

Naquela altura não apaguei a luz, deixei-a acesa sobre a dobra do lençol do divã onde dormia, num quarto de cinco pessoas e quatro camas. Estava acordado e isso bastava para poder morrer. Os outros dormiam e eu ali, no aperto daqueles lençóis de flanela, embalado pelas gotas grossas de chuva que caiam do beirado até ao chão, prometia que não morreria nunca. Quando cuido não morro, quando embalo não morro, quando protejo não morro. Não morro se me dou, não morro se me entrego, não morro se dou a vida pelas coisas em que acredito mais do que na própria certeza de que morrerei para continuar a ser tão vivo como as coisas que me fazem. Não morrerei nunca se não deixar que os outros não vivam, não morrerei nunca se salvar os outros, se ganhar os outros, se for dos outros, se for com os outros, se pedir para que os outros não morram nunca, pedindo para que vivam sempre, que assim me mantenham vivo.

A minha rua precisa de pessoas que não queiram morrer. A minha aldeia precisa de gente que salve. A minha cidade precisa de gente que proteja a vida dos outros. Somos sempre zeladores de alguém e a nossa missão é não deixar que as pessoas morram. O mundo quer morrer, mesmo que digam que procura manter-se vivo a qualquer custo. Eu não quero morrer nunca e tenho hoje o mesmo medo que tinha antes, mas também tenho medo de continuar vivo, se isso for morrer para as coisas em que acredito. Quem cuida vive. Quem ama vive. Quem acredita, faz dos outros, pessoas vivas…até que a luz se apague sobre as nossas cabeças e os lençóis de flanela deixem de ser macios para acomodar a parte de nós que se encerra, deixando de ouvir as gotas grossas de chuva…

Nuno Camelo