Perder a vida, agarrado à vida
Tenho memória de pessoa fresca, ainda nova, sem grandes percalços na vida, além das moinhas normais a que por vezes os sentimentos nos submetem porque somos sensíveis. Tenho tido ao longo da minha vida, na maioria das vezes, pensamentos felizes, sonhos, na sua grande maioria, mas também alguma realidade bonita que me foi moldando a vida e me foi tornando pessoa. Tenho sido feliz e tenho ainda um grande conjunto de espaço livre para mais felicidade, para dar corpo aos sonhos, aos projetos, a mais pensamentos felizes. Não tenho memória de me ter sentido tão infeliz com uma infelicidade na vida dos outros, como a que ainda hoje sinto pela morte das famílias no incêndio de Pedrógão Grande…
Soube de outras catástrofes, de outras vidas infelizes, de outras misérias humanas, de outras desgraças, na minha terra, no nosso país, no país vizinho, no mundo. Soube de atentados, de suicidas que trocam a sua vida por mortes generalizadas. Soube de quedas de aviões, de desaparecimento de navios, de pontes que arrastaram para o vazio da morte pessoas e os seus sonhos. Soube de pessoas desaparecidos, de pessoas que morrem sozinhas, de pessoas mutiladas, de violações e de ditaduras que atentam contra a vida. Sempre, nesses momentos, me senti infeliz, não só pelas decisões humanas, pelo abandono, pelas consequências trágicas, e pela morte grátis, mas também pela condição de terem sido corações humanos a reverteram o normal percurso de vida, das suas vidas, e, inevitável e desgraçadamente, das vidas de outros.
Nunca tinha sentido uma dor tão grande como a que agora experimentei por saber, por imaginar sentir, por imaginar ver, por imaginar ouvir, por imaginar lá estar, por me vincar no peito uma tristeza tamanha pela perda de vidas, de gente que estava viva, pela perda de famílias, de famílias que eram, dentro de carros, no coração do país, entre um mar de chamas que derreteu tudo (e ainda derrete) à sua passagem. Vidas que se perderam num abraço, o último abraço dado. Vidas que se consumiram num desespero cheio de amor, de uma tentativa brutal de nessa condição de final de vida, continuarem a tentar proteger os seus. Doí-me tanto, imaginar crianças a brincar na água, pouco tempo antes, sonhando com os dias que haveriam de vir quando a vida decorre na sua normalidade, mesmo quando isso nos aborrece por ser tão normal.
Essas crianças, no regresso a casa, na continuação das férias, na vida em família, perderam a sua vida, agarrados à vida dos seus, que num abraço ensurdecedor de desespero, se entregam sem alternativa, procurando ainda assim, fechar os olhos e apenas abraçar, deixando-se proteger num momento em que nada já existe para proteção. Guardo na memória fresca, manchada por este momento de terror, a simulação do fim da vida, em tão tenra idade. Imagino um carro cheio de brinquedos, desarrumado naturalmente, povoado por risos e gritinhos de felicidade. Depois imagino-me lá à frente, mãos crispadas no volante, com expressão de alarme no rosto, pedindo silêncio, avaliando tudo à minha volta. Imagino a mão que procura a mão da minha mais que tudo, enquanto uma certeza invade tudo de calor, de tristeza, de fim. Ninguém terá desistido de procurar viver, de prolongar a vida, mas também ninguém terá desistido de perder a vida com os seus, agarrando com toda a força, num abraço único, tendo assim perdido a vida, agarrado à vida que existia. Imagino-me sem tempo, entre a tristeza de um fim, a incapacidade de proteger os meus, e a dor que se deixa de sentir quando abraçamos com força…
Meu Deus, quanto me dói, imaginar este abraço entre pessoas crescidas que gostariam de ser crianças e crianças que quereriam tanto ser crescidas um dia…
Nuno Camelo