Às Terças Com...

Um roteiro interior

O chão era escuro, como se fosse noite debaixo e sobre ele.

Os troncos tinham perdido a vida, e eram agora, alguns, já o suporte de nova vida, que despontava num verde destacado. Mas a maioria mantinha-se apenas hirta, apesar de morta.

O horizonte era assustadoramente vazio. Totalmente queimado, inóspito, sem capacidade para albergar dignamente qualquer réstia de vida.

A estrada era longa, mas parecia ainda mais. A cada quilómetro, percebia que o nó na garganta não era nada, quando comparado com o nó de tantas vidas em suspenso, e de todas as que se perderam.

No caminho percorrido naquele cenário, o coração bateu mais acelerado e o pensamento viajou para junto dos amigos e da família. Sentiu-se ansiosa. Recordou os projectos a médio prazo e os sonhos que têm ficado para trás. Teve medo. E depois lembrou-se que Deus – só Ele – basta.

Há um ano tinha feito a experiência de partir “Nas Mãos de Deus”, sem os planeamentos de que gosta, nem o controlo que (quase sempre) precisa sentir.
Com a vida aberta ao desconhecido, viveu realidades que não esperava – e com elas conheceu traços da personalidade, que andavam ofuscados em tantos planos, exageradamente controlados.

Nas ruas de Madrid aprendeu, com aqueles que não têm casa, que o melhor chão que podemos oferecer é um sorriso e o melhor tecto, um abraço.

Com quem precisou de fugir da guerra, e viu a morte à sua frente, permitiu-se aprender a alegria de simplesmente estar vivo e partilhar essa dádiva.

Pelas mãos de quem entregou a sua vida a Deus, e a gasta, no dia-a-dia, a apoiar homens e mulheres que a sociedade já não se sensibiliza por ver cair ao mar ou dormir na rua, esclareceu as dúvidas do plano que Ele tinha para si.

Por mais viagens que façamos, só quando traçarmos o roteiro interior poderemos chegar ao ponto de entender que, muitas vezes (e ao contrário do que julgamos) o chão que
damos aos outros é como aquele chão ardido – escuro e sem capacidade para acolher, porque demasiado encerrado em si e sem espaço para respirar.

O nosso chão queimado pode sê-lo até ao fim dos tempos, e sucumbir em si mesmo. Ou pode abrir-se às fontes que Deus coloca no caminho, e passar a ser chão que acolhe, e dá vida.

O nosso caminho pode ser focado nas árvores que, já mortas, apenas mantêm a ilusão de viver. Ou pode rasgar horizontes, e abrir trilhos, para que seja possível renascer das cinzas.

Mas nada disto se faz fora do mundo! E por querer um mundo menos escuro, menos de aparência e mais de verdade, independentemente do roteiro escolhido para o dia, ela não deixa Deus em casa quando sai à rua.

[… E só Deus sabe quantas vezes, por essas ruas, “ela” sou eu.]

Helena Tirapicos da Rosa